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Quinquagésima primeira postagem - Construção - Chico Buarque.

Despeço-me dos álbuns nacionais com uma obra prima. De acordo com a Rolling Stone, o terceiro melhor álbum já produzido no Brasil, perdendo apenas para o panis et circensis (já falamos sobre ele) e Acabou chorare dos Novos Baianos (1º lugar da lista). Impossível desassociar o álbum de seu compositor. Chico Buarque é um dos grandes nomes da música brasileira, seja pela forma como escreve (exímio utilizador da Língua Portuguesa), seja pelo conteúdo que escreveu. E escreveu muitas coisas sobre vários temas, fato esse comprovado em um documentário, que quando vi era dividido em 10 partes, explanando cada aspecto das composições dele. Raramente escrevo sobre MPB, acabo me preso às amarras do rock, mas precisamos lembrar que nem apenas de rock viverá o homem e quanto mais estilos pudermos assimilar com qualidade, melhores seremos. Cada álbum nacional trazido aqui tentou mostrar uma forma de se fazer boa música e em língua portuguesa (na maioria dos casos). Bem, vamos ao último álbum nacional. Com vocês, Julinho de Adelaide. Não entenderam? Era o pseudônimo utilizado por ele durante a ditadura, pois para que 12 músicas fossem aprovadas, 36 tinham que ser enviadas para a censura (dito pelo próprio).

01. Deus lhe pague.

A ditadura foi, ao mesmo tempo, um absurdo e uma maravilha. Sem levantar maiores polêmicas na frase, explico. É um absurdo ter sua liberdade tolhida em todos os sentidos por uma ideia de manutenção da ordem social. Não discute-se isso. Por outro lado, a censura obrigava os artistas a buscarem novas formas para escrevem suas músicas, com a intenção de ludibriar os censores e ter sua arte divulgada. Nesse contexto, é estranho entender como essa faixa passou. Levanto a seguinte suspeita. Leram a letra mas não ouviram a música. Apenas com a leitura, temos apenas os agradecimentos (sob a forma de ironia) a tudo que a vida nos dá, seja bom ou mal. Ainda assim, é intrigante como não percebem nas 2 últimas estrofes como a vida com os militares é ruim. Faixa obrigatória. Nos fones, vozes divididas, o batuque ao lado esquerdo enquanto demais instrumentos, ao lado direito. Muito bom.

02. Cotidiano.

Qual? Cotidiano é uma ideia, um conceito que significa algo que acontece diariamente, constantemente. Aqui, temos um casal e a letra mostra o dia a dia de um casamento, dentro dos moldes mais antigos, onde a esposa fica em casa e o homem é o responsável por prover. Algumas observações bobas: o trabalhador passa o dia fora de casa. Percebemos isso quando a esposa o beija com a boca de café e diz que o espera pro jantar. Algumas pessoas não percebem isso pois quando ele está pensativo sobre a vida que os 2 levam, ele pensa em parar com tudo (quem nunca sentiu esse desânimo?) e depois cala-se com a boca de feijão (marmita). Para dar a ideia de cotidiano, a música encerra repetindo a primeira estrofe. Para quem fala que não gosta de fazer sempre as mesmas coisas, talvez a letra sirva pra mostrar que independente de gostar ou não, rotina é um fato.

03. Desalento.

Chico Buarque fez nesse álbum um manifesto de protesto contra o sistema ditatorial. Fato. Isso não impede de colocar no álbum uma bossa nova (dentro do conceito da bossa nova de samba desacelerado) contando uma história de um homem arrependido. Fora do tom? Sim. Isso importa? Não. Quem já errou irá reconhecer os traços do perdão pedido por ele durante o texto. A descrição das sensações de vazio e abandono, juntamente com a promessa de que mudará são texto padrão de todo pedido de desculpas. Pedido este, tão sofrido e sincero, que ele mesmo não pode falar. Precisa que uma outra pessoa mande o recado. Como falei anteriormente, poderia estar em outro álbum. Mas quem se importa? Ouçamos. Afinal, parceria de Chico Buarque com Vinícius de Moraes, não joga-se fora ou despreza-se.

04. Construção.

Quase deixei essa parte em branco. Não sinto-me digno de escrever sobre essa faixa. Afinal, se uma faixa resume a genialidade de um compositor, essa é ela. Temos um texto com versos alexandrinos (12 sílabas poéticas e uma cisão na sexta sílaba) e 41 versos terminados com proparoxítonas (17 no total) para dar o ritmo da música. Some-se ainda, o efeito de homofonia (isso é quando os sons iguais repetem-se formando uma unidade rítmica) que dá a ideia de que os dias passam com pequenas alterações em seu cotidiano. Temos a música dividida em etapas: inicia com a ida ao trabalho, expediente, pausa para refeição e acidente trágico ao final. Destaco ainda que o ritmo é mais intenso, pois o trabalhador abandona a figura de ser humano (presente no início da faixa) e passa a ser uma máquina. E sempre encarando a morte como um empecilho, e não, como uma vida que se vai. Note que ele sempre morre atrapalhando alguma coisa. No álbum, a letra é complementada por belos arranjos do maestro Rogério Duprat e tem a participação do MPB 4. Para finalizar, ainda temos a crítica aos militares com o "Deus lhe pague", que não está na letra.

05. Cordão.

Essa é mais uma sobre o período da ditadura no Brasil. Alguns álbuns que trouxe falam sobre esse período e poderiam contribuir com professores ao discutirem o tema. Quando lemos sobre isso, imaginamos que o povo tinha que ter uma forma de reagir. Claro que ao vermos como a sociedade era reprimida, vemos que não é tão simples assim. E nessa faixa, Chico Buarque é direto ao falar que "ninguém me acorrentar, enquanto eu puder cantar, enquanto eu puder sorrir, alguém vai ter que me ouvir" e chama para a manifestação em grupo, o cordão, no trecho "pois quem tiver nada pra perder, vai formar comigo o imenso cordão". Aproveito para uma pausa para uma observação. Perceba a frase "quem tiver nada pra perder". Fosse um compositor desatento, certamente teria escrito "quem não tiver nada pra perder". Por isso que precisamos de música boa. Ela ensina. Passado o momento professor, vamos adiante.

06. Olha Maria.

Parceria de Chico Buarque com Tom Jobim. A música tem a característica do maestro. A letra de fato é híbrida, embora percebamos quem escreveu o que. Temos quase um acalanto (teremos de fato um depois), com melodia parecida com Luíza (Tom Jobim). A letra fala de um caso e Maria é apenas um pseudônimo (lembremos que é o nome mais comum no Brasil). Temos pessoas em realidades diferentes. Ele, preso ao regime ditatorial, sem perspectivas, sem sonhos, sem alegrias. Ela, moça livre e com muita energia. Tanta que não pode ficar ao lado dele. Então ele despede-se, mesmo desejando tê-la durante uma vida e não apenas por uma noite. Mais uma pausa nos protestos contra a ditadura.

07. Samba de Orly.

Nada de ditadura aqui também, embora tenhamos uma história divertida na faixa. Chico estava exilado na Itália e conseguia fazer algumas apresentações, decorrentes do sucesso que a música "A banda" fez por lá. Porém, em determinado momento as apresentações diminuíram e a situação apertou. Essa parte é contada por Toquinho, que escreveu a faixa junto com Chico Buarque e uma ponta de Vinícius de Moraes. Então Chico entra em contato com Toquinho informando que haviam apresentações a serem feitas e ele queria a presença dele para fazerem isso juntos. Toquinho pega o avião e desembarca na Itália. Em lá chegando, nada de apresentações. Chico fala que o empresário fugiu com o dinheiro. Chico acaba por pedir dinheiro ao amigo, e ainda conseguem fazer algum dinheiro por lá. Não muito. Embora o título seja Samba de Orly (aeroporto na França), Toquinho desembarcou na Itália mesmo. Ponto curioso: Boa parte da letra é de Chico e Toquinho complementou com o trecho "vê como é que anda, aquela vida à toa, se puder me manda, uma notícia boa". Vinícius, com ciúmes da parceria, pediu pra mexer na letra. A parte de Vinícius foi vetada pela censura mas mesmo assim, o nome dele aparece na parceria. Então, temos uma faixa que é uma referência apenas para eles que viveram isso.

08. Valsinha.

Música é algo relativo. Algumas acabam não sendo tão famosas mas tornam-se para nós por marcarem algum momento importante. Então não podemos falar em música mais bonita ou mais importante da história. Apesar disso, essa é uma músicas mais bonitas que já ouvi. Embora não tenha relação com algo pessoal, eu desenho toda a música em minha cabeça, fosse uma peça teatral e confesso, aqui, que deixo-me tomar pela emoção ao ouvir esse poema. Se na faixa anterior Vinícius era coadjuvante, aqui, assume a posição de protagonista. A valsa é dele, com alterações de Chico Buarque. A principal alteração está no início. "Convidou-a pra rodar". Vinícius queria que fosse "convidou-a pra amar". Chico retrucou e argumentou que o homem nessa música é rude. Se ele chegou diferente, não poderia já chegar e ir direto ao ponto. Nesse instante ele teria que ser romântico, para reforçar a diferença de atitude. Sobre a música, o que comentar? Temos um cara chato, sério, que está sempre reclamando de tudo mas que em um belo dia, quis relembrar os tempos de namoro. A mulher se espanta e vai se arrumar, como já não fazia, depois eles saem, namoram e voltam para casa e aí, no outro dia, tudo amanhece em paz. Detalhe para a intensidade da música, ela vai aumentando seu ritmo (como a valsa) até o fim, quando ela relaxa. Perfeição existe e está aqui.

09. Minha história.

Essa é uma adaptação. A música original é italiana e chama-se Gesubambino, de Lucio Dalla e Paola Pallotino. Não é a única adaptação de Chico Buarque. Talvez a mais famosa seja a versão de Os Saltimbancos, que virou filme dos Trapalhões nos anos 80 (época em que havia muita coisa boa e cultural). A música retrata a vida de uma mãe solteira, sob a ótica do filho. GesuBambino foi escrita para retratar os frutos dos relacionamentos das mulheres italianas com soldados estrangeiros durante a segunda guerra mundial. Na versão brasileira, temos uma hinterlândia (área atrás de um porto ou cais) e a mãe de Jesus teve uma relação com um homem que partiu, deixado-a com o filho. A narrativa é muito bem construída e há detalhes como o vazio que a mulher sente, e vemos que existe apenas a revolta do jovem por não conhecer seu pai e por ver sua mãe definhar (representada pelo vestido, cada dia mais curto) e seu dia a dia (cotidiano) é a vida de mar e bar. Quem conhece a vida de pescador sabe que em décadas passadas, todas as pessoas nascidas em praia já tinham seu futuro desenhado. Dono de bar, de comércio ou pescar. Sabemos qual o de Jesus.

10. Acalanto.

Interpretação simples para a faixa que encerra o álbum: Cantiga de ninar, simples, pura e sem maldades, visto ter sido escrita para sua filha, Helena, ao retornar ao Brasil. Apesar disso, há a crítica quando cita que não vale a pena despertar. O país não está bom para ela. Muito bonita e é uma forma curiosa de encerrar o álbum.