Quadragésima sétima postagem: Cartola - Cartola (1976).
Voltando à música brasileira. Não há como evitar a quantidade de bons trabalhos que existem em nossa música. Devemos analisar música de dois tipos: A boa e a ruim. E esse conceito vai de acordo com o gosto musical. Dessa forma, entendemos que há álbuns que eu gosto e outros, que nem tanto. Mas não devemos fazer comparações ou listas. Para os que gostam da lista, esse aqui consta como o oitavo melhor da história da música brasileira. Claro que ele não entra aqui por isso. Entra por ser um ótimo álbum, com ótimas letras e lindos arranjos de samba. Então, convido a degustar do segundo álbum de um dos melhores compositores que o Brasil teve, Cartola.
01. O mundo é um moinho.
Música de alerta. Foi composta para uma afilhada de Cartola. Que ao ser adotada por ele, como se fosse uma filha, despertava a preocupação dele. A preocupação era sobre as escolhas amorosas dela. E a letra deixa isso bem claro. Gosto muito dessa música. É um retrato de como o mundo trata quem acha que o dominará. Lembro de Nietzsche, ao olhar para o abismo, o abismo olhará para você. Acho que nenhum texto será bom o suficiente para essa letra. Então, reconheço minha limitação e passarei para a próxima faixa. Detalhe: a primeira "volta" da música está separada entre as caixas de som do lado esquerdo e direito. Depois que a música é repetida, já como samba, temos tudo junto novamente. Sugiro fones.
02. Minha.
Vamos cantar os amores que não ficaram. Ideia simples e muito bem retratada aqui. Quem disse que ela foi minha? Se fosse, seria rainha. Mas não é. Se alguém previu, certamente necessita de novos olhos ou novos olhares. Mas isso é conversa que não adianta mais se discutir. Os lamentos por ela não ser minha, já não incomodam. Que seja santa em outro altar. E isso em apenas 2:21 de música.
03. Sala de recepção.
Uma boa história aqui. Heitor dos Prazeres, amigo de Cartola, chegava de viagem com ele e Paulo da Portela no dia do desfile de suas escolas de samba. Quando a escola Paz e Amor (de Heitor) entrou, ele chamou os amigos e todos entraram. Quando a Mangueira (fundada por Cartola) entrou, mesma coisa. Quando chegou a vez da Portela desfilar, Paulo foi proibido de entrar. Ele sentou-se e começou a chorar, sendo levado à Mangueira por Cartola. Conta-se que depois desse dia, Paulo da Portela jamais voltou a desfilar. Por isso que neste samba, que canta a Mangueira, Cartola acrescentou o trecho "Onde Mangueira recebe todos os amigos e até inimigos muito bem". Genial.
04. Não posso viver sem ela.
Mais um samba. E dessa vez pra pedir pra essa mulher voltar. Essa mulher que aprendeu quem é ele, que sabe exatamente como ele pensa, como age, e que simplesmente foi embora. Mal sabe ela que na hora que quiser voltar para a minha companhia, tudo será esquecido. Esse é o tom da faixa. É o homem que sofre e que deseja a companhia de sua amada novamente. Tudo escrito de forma clara. Recado direto.
05. Preciso me encontrar.
Essa aqui não é de Cartola. É de Candeia. Estavam os dois conversando, Candeia já em cadeira de rodas, e Cartola explicando que estava desgostoso com o samba. Andava desgostoso com a vida na verdade. E Candeia disse que também se sentia assim, especialmente por não poder andar. Por isso que havia escrito um samba e queria que Cartola colocasse música, pois ele não estava conseguindo encontrar o ritmo. Então Candeia começa com "deixe-me ir, preciso andar". Cartola o interrompe e fala "você começa a música dizendo que precisa andar?". Ambos riem da ironia da letra mas Candeia explica que a letra não é sobre ele. É sobre esses desencontros da vida. Depois que Candeia mostra a letra toda, Cartola a guarda, mas não sem antes prometer que iria gravar a música. Infelizmente Candeia morreu antes de ver essa linda música cantada na voz de Cartola. Talvez a música que melhor retrate esse gênio, ironicamente não foi escrita por ele. Detalhe: Coloquem os fones.
06. Peito vazio.
Mais uma faixa sobre o amor que se foi. Analisando sem julgar, cada pessoa reage às perdas de uma forma. Alguns escrevem, outros buscam a religião, outros ficam tristes e sem ação e outros, bebem. Na faixa, temos a última opção. Mas com algumas das características anteriores. A falta de inspiração significa que ainda não sabe como o mundo continuará sem ela ao lado. As noites são longas e no peito, apenas um vazio. Mas vamos seguir vivendo pois o tempo tudo cura. A saudade e o vazio esvair-se-ão. Linda faixa.
07. Aconteceu.
Quando comentam que Cartola era analfabeto eu nem preciso de muitos argumentos. Afinal, basta ler as letras que ele compôs. Caso queiram aprofundar, leia o início dessa faixa. Quando ele, decepcionado, diz que a mulher para quem ele fez tudo, inclusive dando uma casa pra ela, revela toda sua impudência. Impudência? Você não leu errado. Isso é uma característica de quem é impudente. Não adiantou? Descaramento ou falta de pudor. Analfabeto sou eu, que não conseguiria nem escrever uma frase com tal palavra, imagine uma letra.Talvez por isso a mulher da faixa tenha pedido pra voltar, espero que ela realmente tenha aprendido a lição.
08. As rosas não falam.
Linda música ou linda declaração de amor? Eu não sei. Curiosidade sobre a música. Dona Zica, esposa do Cartola, ganhou um ramalhete de rosas e colocou-as no jardim. No outro dia, muitas haviam desabrochado. Ao perguntar a Cartola o motivo, ele respondeu: "Não tenho como saber, as rosas não falam". A frase ficou no subconsciente dele e alguns minutos depois, a letra estava pronta. Lembra do analfabeto? Ele escreveu que "as rosas não falam, simplesmente as rosas exalam, o perfume que roubam de ti...". Levem meu diploma. De nada adiantou ter papel de formado. Pra mim, um dos versos mais bonitos já escritos na música mundial. Azar de quem não entende Português.
09. Sei chorar.
Essa é boa. Confesso que essa eu consigo imaginar acontecendo. A música não é boa apenas por lembrar que no amor aprende-se muito mais a sofrer do que a amar. Isso é fato. Sofre-se várias e várias vezes até amar uma vez. A parte que deixa a faixa emblemática é quando ele fala que hoje chora e a mulher que ele adora talvez também chore, mas nos braços de outro, sorri e repete as mesmas promessas que fez para ele, mentindo. A conclusão dele é que sempre estamos iludidos no amor. Entendo que nos enganamos pois sem ser assim jamais seríamos felizes. Ficaríamos paranoicos. Algo a se pensar.
10. Ensaboa mulata.
Essa música não seria executada hoje. Seria racismo. Afinal, uma mulata ensaboando conota que as negras são domésticas. Claro que ninguém vai ler a letra para perceber que ela fala que "estou lavando a minha roupa". A música é simples e tem uma característica curiosa. A canção é um canto de trabalho. Música que tem como característica principal a repetição, letra simples e que remete à atividade desenvolvida. Para a época, música normal de um tempo onde não via-se maldade em tudo que escreve-se mas aceita-se coisa pior em outros setores da sociedade (sim, estou falando de novo de todos os políticos, todos).
11. Senhora tentação.
Essa faixa é chamada de "meu drama" mas ficou conhecida como "senhora tentação". Essa é direta também. Ele está apaixonado pela primeira vez e não está conseguindo entender o que é esse sentimento. Não está acostumado a pensar na pessoa o tempo inteiro, sentir saudades, lembrar do cheiro dela a todo instante, dos olhos, das mãos... tudo confunde a cabeça dele. Até a batatinha frita. Ele lembra que apenas ela pode fazer com que isso passe. Apesar disso, ele ainda duvida se isso é de verdade ou é apenas uma ilusão.
12. Cordas de aço.
Aqui temos o amigo fiel do sambista. O violão. Ele entende porque a tristeza toma conta da alma, porque a alegria sumiu. Aquela mulher, ele acredita, ainda o espera. Um dia, os 3 poderão ir para casa cantando. No momento, apenas ele e o confidente violão conversam sobre esse abandono. Música típica da boemia.