Quadragésima segunda postagem: Ideologia - Cazuza.
Mais um texto com material nacional. E dessa vez para trazer o terceiro álbum de Cazuza. Apenas para contextualizar, estamos falando de letras escritas quando ele descobre que contraiu AIDS em uma época onde isso era sentença de morte. Apesar disso, não é um álbum depressivo ou cercado pela autopiedade. Ao contrário. Temos uma material reflexivo onde a política do país, segregação racial e uma música romântica para encerrar. Então, de tudo um pouco e um pouco de tudo. Vamos ao que interessa.
01. Ideologia.
Engraçado. Na última postagem, a faixa-título encerrava o álbum e aqui, o inicia. Temos uma faixa que mostra o crescimento forçado de um jovem. Se antes era revolucionário e cheio de ideias, agora faz parte do grupo que combatia. A filosofia de sexo, drogas e rock and roll não trouxe alegrias. Trouxe a AIDS para a vida dele. Ironicamente, se o que buscava era uma ideologia, cria uma ao questionar o estilo de vida anterior. Eu compreendo a faixa quando cita que "meus heróis, morreram de overdose". Não os classificaria como heróis mas pessoas que tiveram boas ideias foram-se assim. Lamentável.
02. Boas novas.
Voltando de viagem dos USA, onde começava a tratar-se contra a AIDS, Cazuza mostra na faixa o que seria sua vida a partir desse retorno. Ver a cara da morte e perceber que ela está viva resume bem a faixa. Ele anuncia as boas novas como se fossem bobagens embrulhadas em papel. Essa bobagens são: Vamos viver até o momento em que não vivamos mais. Não há essa frase na faixa mas a interpretação é simples. Melhor viver e dar errado do que imaginar "e se?".
03. O assassinato da flor.
Música curiosa. Temos alguém com dor (provavelmente Cazuza, sofrendo os efeitos da doença) mas que se esforça para receber as flores que alguém traz. Ao receber as flores, lembra-se do ser humano. "Flores não se tocam, vivem pra si e pros passarinhos e pro vento" demonstra que as pessoas vivem em seus mundos e vivem apenas para quem elas quiserem. Temos um parênteses importante. As flores morrem em atos passionais. Ao serem colhidas apenas para serem entregues como presente. As flores vivem apenas se estiverem em seu mundo até que um ser humano, bom, simplesmente a arranca dali para agradar outro. E ainda é reconhecido como romântico. Belos heróis.
04. A orelha de Eurídice.
Depois de tanto tempo, hora de aula de mitologia. Eurídice (que não vejo relação entre o mito e a pessoa da música) era uma ninfa pela qual Orfeu desceu até o inferno para resgatá-la. Como as histórias mitológicas nem sempre terminam bem, Orfeu poderia casar com ela se, durante o retorno para o mundo dos vivos, ele não a visse. Durante o caminho, ela chama Orfeu e, claro, ele a vê. Então ela é puxada de volta ao Hades. Pobre Orfeu. Diz a lenda que os cantos dele pela amada faziam os deuses chorarem. Essa da letra não tem uma história romântica assim. Vou destacar o violino da faixa. Muito gostoso de ouvir, dentro de uma faixa com pegada de rock and roll. Sobre a faixa. Confusa. A imagem de uma orelha envolta em um pano lembra algum filme sobre máfia. Claro que pensei também em Van Gogh mas não quir ir por esse caminho. Fico na ideia da perseguição. Os dois querem estar juntos mas tem alguém que não permitirá. Então eles devem buscar ideias para que possam continuar juntos. Da forma que der.
05. Guerra civil.
Cara de rock dos anos 80. Música do Ritchie com Cazuza. A faixa mostra alguém perdido, a procura de uma pessoa. Nem sei o que ele quer com ela. Por mais que a procure, ela sempre está em algum lugar onde ele não está. Procura pela mão dela (sempre as mãos) mas ela está tão distante agora que apenas nos sonhos eles se encontram. Tudo que ele tinha e não tem mais nem importa. Curiosa essa passagem. Tudo que foi dito foram apenas frases decoradas, como um roteiro, uma missa a ser celebrada. Então, será que não foram frases verdadeiras? Poderiam ser verdadeiras mesmo que não fossem originais?
06. Brasil.
Essa nem precisa de texto. Vou tentar resumir os principais pontos. Festa pobre é a festa da democracia. Em algum momento falaram que o povo tinha poder. Pura ilusão. Isso é apenas o início da música. Quando não oferecem nem um cigarro significa que esse povo nem pra ser comprado serve. Serve apenas para roubar (cartão de crédito é uma navalha). Pedir para que o Brasil mostre a sua cara é pedir o impossível. Pedir para que o povo e seus governantes (que sim, são um reflexo do povo) mostrem que só pensam em si. Independente do prejuízo que isso cause aos demais. Gosto da crítica às emissoras de TV. Sempre programando as pessoas para cumprirem ordens ou andarem dentro de determinada linha (atualmente, programadas para andarem com medo). Sabemos que o problema aqui somos nós. Todos nós. Votamos apenas para vermos que continuaremos com os mesmos (ou talvez, piores) problemas da gestão anterior. Reforço que isso é independente de partido político. Somos especialistas em reclamarmos de governos colocados por nós. Gostamos de protestar contra o roubo de um político mas gostamos de passar na frente, na fila. Não muda o povo, não mudam seus líderes. Afinal, sempre tem um novo brasileiro precisando de cimento e dentadura.
07. Um trem para as estrelas.
Uma música mais calma mas com letra tão forte quanto as outras. Música que mostra como os navios negreiros ainda são comuns. Apenas chamamos de metrô, ônibus, trem, entre outros. Gosto dessa faixa desde a adolescência. Especialmente pela atualidade do trecho "estranho teu Cristo, Rio. De olhar tão longe, além. Com os olhos sempre abertos mas sem proteger ninguém". Para a situação atual desta cidade, isso é perfeitamente aplicável. Também gosto da frase "nesse filme, como extras, todos querem se dar bem". Entra no contexto do álbum. País dos espertos e miseráveis. Linda parte em um trem para as estrelas, depois dos navios negreiros, outras correntezas. Há uma versão onde Gilberto Gil (sim, temos uma parceria) fala entre versos: "meu negro". Dá todo o tom de contínua escravidão onde a única salvação é o trem, um dia.
08. Vida fácil.
Hora de tirar um sarro da cara dos privilegiados. Festa da burguesia que vive em um mundo completamente diferente daqueles da faixa anterior. E é importante manter as aparências. E desviar algum dinheiro para manter a pose. É usar o carro do governo fora do expediente... corrupto sim, mas pior do que eu fazem outras pessoas e nada acontece. Esses são nossos burgueses.
09. Blues da piedade.
Essa vai pra muita gente. O que há de pessoas vazias no mundo (e tenho a sensação que estão todas ao meu redor). Cazuza ao menos pediu piedade. Cara educado. Eu não tenho tanta clemência. O texto descritivo caracteriza bem as pessoas que gostam de olhar para a vida dos outros com inveja. Como não possuem coragem para arriscar, sentem-se mal por verem outras pessoas arriscando. Mesmo que dê errado, melhor saber amar e apanhar do que ficar apenas imaginando como seria. Para essas pessoas que não têm essa capacidade, resta apenas aconselhar a ter juízo e ficarem presas em seus mundos, em seus dogmas, até apodrecerem. Nada de piedade para vossas cabeças.
10. Obrigado (Por Ter Se Mandado).
Tentando fazer essa parte do texto sem rir (muito). Gosto do agradecimento. Sempre é um sinal de reconhecimento por algo feito. Seja bom ou ruim. Então o agradecimento pelos abraços, pelas tardes... é justo. Obrigado por esculhambar meu coração é uma frase deliciosa nessa música. Expressão direta e clara. Tem que ser assim. Ao final, obrigado por ter se mandado e obrigado por não ter voltado. Sinal que as coisas funcionaram como você queria, independente de querer saber se funcionou para o outro. Cazuza estava chateado nessa faixa.
11. Minha flor, meu bebê.
Faltando pouco para encerrar o álbum, uma música feita sob encomenda. Faixa feita para a empresária do Cazuza, Márcia Alvarez. A faixa é uma declaração de amor, na forma mais carinhos que ele encontrou. Aliás, romantismo dará o tom desse fim de álbum. É uma faixa de concessão. Lembrando que amar é ceder. É deixar o outro aparecer, é fazer-se burro para que o outro se divirta, é tentar cuidar do outro sem que o outro nem ao menos cuide de volta. Quem ama, ama sem querer. Mesmo a dor que se sente, esconde ao final uma pontinha de prazer. Essa parte foi genial. E vamos ao final do álbum.
12. Faz parte do meu show.
Não poderia encerrar o álbum de melhor forma. Certamente uma das músicas mais conhecidas do Cazuza. Namoro de adolescente e o cara é mais velho que ela. O fato dele ir busca-la na escola faz com que as amigas fiquem com inveja. Depois, em alguma festa, ele estão namorando e ele, inexperiente, tenta demonstrar segurança no toque. Como um típico adolescente, haja promessas que nunca serão cumpridas. E não vai dizer a ela para que ela não fique sozinha (esperto/safado). Tudo isso é esse show. Uma caricatura que ele está vendendo. Com o tempo, a traição acontece (confundo tuas coxas com as de outras moças, te mostro toda dor) e depois disso, tenta demonstrar que tudo mudou ao terem um filho juntos. Pensativo, insatisfeito, começa a se entregar aos vícios mesmo sabendo que estes o abandonarão (encontro um abrigo no peito do meu traidor). Para tentar reavivar o amor que quebrou-se na traição, e que não está reconstruído, ele volta às táticas da adolescência, para chamar atenção. Ele não consegue sair do personagem que criou, esse Pierrot (aquele palhaço triste) e assim, vai tentando conviver com as pessoas. Tentando fazer com que elas participem do mundo dele, mas sem o modificar.